BEM VINDO AO BLOG. DEIXE SUA MENSAGEM, SEU COMENTÁRIO, SUA OPINIÃO. Contato: jantoniounai@gmail.com tel: (38) 9905-1355, (34) 9273-9722 ou pelo campo "fale comigo" nesta página



terça-feira, 20 de julho de 2010

Um oceano de recentimentos


BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Não é difícil despertar a ira do jornalista António Mega Ferreira, presidente do conselho de administração do parque da Expo 98, o empreendimento de maior projeção internacional do país desde seu ingresso na União Européia.

Basta mandar "um atorzinho da televisão brasileira" a Lisboa e instruí-lo a declarar, no aeroporto, sem nunca ter pisado em solo português antes, que adora o país porque é descendente de portugueses e acha a cidade maravilhosa.

"Não suporto que falem do que nem conhecem. Gostamos do conceito do Brasil, mas não sei se gostamos muito de nos confrontarmos com os brasileiros", diz Ferreira, de seu escritório no alto de um prédio com vista para o Tejo.

Nem a especialista em literatura portuguesa Leyla Perrone-Moisés, autora de "Altas Literaturas", entre outros, escapou ao confronto com os portugueses no aeroporto de Lisboa. Ainda assim, faz questão de dizer que adora Portugal e acha Lisboa maravilhosa -no seu caso, com conhecimento de causa.

"Portugal tem uma das maiores poesias do mundo e isso para mim já bastava para ter uma imagem muito positiva do país. Mas a relação dos portugueses com os brasileiros mudou muito desde a entrada para a Comunidade Européia. Isso com relação ao português comum e, principalmente, ao português da polícia (risos)", diz.

Há dois anos, Perrone-Moisés foi a um congresso em Lisboa e acabou passando o diabo na alfândega: "Como se ser brasileiro fosse ser suspeito. Quando depois a gente conta essas experiências para os amigos portugueses, eles ficam desolados. Mas está difícil".

Por outro lado, houve a contrapartida do brasileiro comum, com a visão irônica do português: "Eles se queixam muito disso. O Brasil sempre foi uma ex-colônia sui generis. As outras colônias ficaram com rancor da metrópole. Nós ficamos com a ironia, principalmente por causa da imigração de portugueses muito simples, que criou a imagem das piadas".

Eduardo Lourenço, considerado o maior ensaísta português vivo, teve de aturar essas piadas quando era jovem e dava aulas na Bahia. "Ele é um dos amigos portugueses que ficaram com uma certa mágoa", diz Perrone-Moisés.

Quando chegou ao Brasil pela primeira vez em 65, Arnaldo Saraiva, professor de literatura brasileira da Universidade do Porto, também se surpreendeu ao notar que "alguma inteligência brasileira tinha indisfarçados ressentimentos em relação a portugueses, fossem portugueses humildes como os imigrantes, fosse em relação até a inteligência portuguesa", diz.

Para Mega Ferreira, essa mágoa vem desde o século 19: "O país colonizado era muito maior que o país colonizador. Há um paternalismo invertido da parte dos brasileiros e um paternalismo invejoso por parte dos portugueses".

Nos últimos anos, essas diferenças foram acirradas com a entrada de brasileiros em busca de trabalho no mercado português, e Saraiva admite que os ressentimentos não morreram nem vão morrer.

"A imigração de baixa qualidade (prostitutas, repassadores de droga), além dos que vinham disputar lugares de trabalho num país que começava a ter algum problema de desemprego, trouxe certa perturbação e em alguns lugares há uma imagem pejorativa do brasileiro, que não existia em Portugal e não existe de maneira geral", diz.

Para Jorge Couto, historiador da Universidade Clássica de Lisboa, "sem o melhor conhecimento dos dois lados não será possível ultrapassar os estereótipos, quer da piada do português, que remete ao século 19, quer da visão desfocada do brasileiro que circula em alguns meios portugueses".

A invasão das novelas brasileiras contribuiu em parte para criar uma reação ao que alguns chegaram a ver como imperialismo cultural. "É um subproduto intelectual que narcotizou a população portuguesa à hora do jantar, e portanto a certa altura acho que passou a ter um efeito narcoléptico sobre a inteligência. Mas não sou uma purista da língua. O discurso português é muito mais abastardado pelos próprios portugueses do que pela telenovela brasileira. O intelectual português racional sabe perfeitamente que a cultura brasileira tem cambiantes diversos. Não me ocorreria de maneira nenhuma confundir um romance do João Ubaldo ou a poesia do Carlos Drummond com um produto da Globo", diz Clara Ferreira Alves, colunista do "Expresso".

A verdade é que a língua se tornou um obstáculo nas tentativas de aproximação. Qualquer intelectual português fica de cabelo em pé só de saber que, ao publicar um livro no Brasil, as editoras locais cogitem em "traduzi-lo". E que um romance como "Os Cús do Judas", de Lobo Antunes, possa receber o título de "Os Cafundós-do-Judas".

"As duas línguas estão muito separadas. Para nós, a escrita brasileira é uma língua exótica. A língua brasileira hoje está muito mais penetrada por palavras americanas. O português ficou para trás, como uma língua um pouco ancestral e antiga, e o brasileiro foi evoluindo sozinho", diz Ferreira Alves.

Nada mais compreensível, diz o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap, que os portugueses reajam. "Portugal é um dos Estados mais antigos estruturados em torno de uma língua e uma cultura homogêneas. Na medida em que o português do Brasil ameace isso, eles têm uma certa resistência, porque a língua é o elemento de unidade nacional. Mas não acho que haja preconceito", diz.

Alencastro, cuja mulher e o filho moram em Portugal, tem uma outra explicação para o afastamento entre os dois países: "Desde o 25 de abril, Portugal deu uma reorganização total na sua concepção nacional do Estado e assumiu-se inteiramente como nação européia. Há uma vocação européia que Portugal está tendo pela primeira vez desde o século 15. A coisa da vocação ultramarina e tal acabou. O essencial deles hoje é se afirmar como país europeu dentro da União Européia. Daí essa visão generalizante sobre a questão dos descobrimentos, onde Portugal aparece como a vanguarda do Ocidente".

Essa posição gera um outro dilema. "A europeização pode ser para eles também uma hispanização, porque o centro da Península Ibérica é Madri. O meio de rebater isso é se ancorar um pouco na cultura brasileira. É o que acontece na mídia, com esse negócio de novela e música brasileira", diz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário